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segunda-feira, 31 de março de 2014

O maracá e o arrasta-pé

A pensar no contratempo que estragou o dia, com o corpo ensaboado, Elvino esfregou os calcanhares na pedra. De cócoras, com uma cuia escurecida pelo uso, livrou-se da espuma e depois mergulhou nas águas mansas da acanhada barragem. Reanimado pelo banho, foi ter na modesta cozinha da casa, vestindo um calção de sarja azul, descorado pelo uso. Comeu o pirão de leite com maxixe em silêncio e, nesse entretempo, a mãe comentou o desejo de arrendar outra parte das terras, haja vista a intenção do genro que era de se mudar para Monte Haurido. Sem pressa, como era usual, limpou os dentes, com rapa de juá. Trocado o calção pela cueca de morim, vestiu uma roupa de linho, limpa e engomada. Espargiu água-de-cheiro na barba recém-afeitada e na parte posterior do pescoço. Ao deixar a casa, pediu a bênção da mãe, como era hábito, e avisou de que era plano voltar depois que o galo cantasse.

O modorrento crepúsculo, que ensombrava o roçado de subsistência que a mãe, com a ajuda de Marcelino e Balduíno, tocava na parte mais plana do terreno, a oeste da casa, o encontrou nas botinas lustradas, pronto para vadiar. A esmagar as sarças, que se enredavam pela vereda, foi aparelhar o cavalo. A caminho do cercado apequenado, escutou, além das próprias pisadas, os grasnados agourentos dum caburé desgarrado, um crocito tão rouco que arrepiou o cabelo. Ao se juntarem na cabeça a lembrança do maracá da cascavel com o lutuoso piado, ocorreu-lhe a ideia de mau agouro. Com o credo na boca, benzeu-se três vezes e forçou o sentido noutra coisa, mas o pensamento parecia agir ao revés do desejo.


Chegou ao samba à boquinha da noite, quando o concertista debulhava com a mão calejada os pequenos botões do teclado do instrumento, e no compasso dum xote, a menear a cabeça seguia o movimento do pregueado do velho fole da concertina de oito baixos, que distendia e comprimia com mestria. O ritmista tocava um pandeiro, batendo no couro com gestos afetados e certas momices. Presumido, brandia as soalhas, sacudindo-as no ar dum modo cadenciado e triunfal. Sobrepondo-se ao arrastado dos chinelos, ouvia-se o estalo seco das alpercatas de rabichos, que batiam contra os calcanhares endurecidos dos dançadores, seguindo na forma de contraponto o compasso binário da melodia.

 (in Da Canga ao Cangaço: dias de serra e sertão, TAL Editora, São Paulo, 2012)
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